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quarta-feira, 11 de novembro de 2009

A RESSUREIÇÃO


A RESSUREIÇÃO


Dona Florinha é uma simpática senhora que ficou casada muitos anos com Dr. Antonio, tiveram um filho, Tonhão, solteirão convicto pelo menos até conhecer a princezinha. Hoje Dona Florinha vive de renda, depois de cumprir toda uma vida educando, ajudando o próximo, dançando e indo à academia. Dona Florinha adora dançar e fazer ginástica.

Apesar de separada do marido, ela mantem com o cujo uma relação fraternal, ele é, ainda, a garantia de muita coisa em sua vida, providencia encanador para consertar o vazamento do banheiro, vai a telefônica reclamar da conta alta, dá banho, corta as umhas, perfuma e vaporiza Mina, a espontânea cadelinha da madame.

Quando Dona Florinha foi a um casamento em São Paulo, deixou Mina aos cuidados do ex-marido, que dá-se muito bem com ela. Carinhoso como só ele sabia ser.

Em São Paulo, aliás, Dona Florinha conheceu um fazendeiro do interior, conversaram alguns minutos, ela achou o velho até bem ajeitado. Como ele também era amigo de Cristininha, sua comadre, se um dia quisessem continuar a prosa, quem sabe até mais, saberiam como se encontrar.

Dona Florinha mora em Copacabana, quase na Lagoa, levanta cedo, medita ainda na cama, conversa e joga bridge na internet, pratica golfe terças e quintas, handicap 15, vice-campeã carioca classe senior por dois anos seguidos, mas sua grande paixão é seguir a novela das oito - que começa às nove - pena que sua televisão esteja velha.

Ela luta com a idéia de comprar uma nova, daquela fininha e chique, que fica pregada na parede.

Dr. Antonio vive no Jardim Botânico, um gentleman, paquerador, é o último adepto da cantada pragmática, milongueira. Dona Florinha não fala com ele desses detalhes, poupa-se, e quer, no fundo, que ele seja feliz.

No Natal, ele convenceu sua ex, disse que ela podia dar-se de presente aquela TV, e tanto insistiu que ela pediu prá ele fazer um orçamento. Ele passou uma tarde no shopping por conta disso, foi nas Casas Bahia, Ponto Frio Bonzão, Magazine Luiza, Fenac, Fast e outras lojas que agora não lembro. Levou o melhor preço, Dona Florinha mexeu na poupança, fez o cheque.

No dia que a televisão chegou foi a maior felicidade, agora ela podia ver o José Mayer em resolução digital. Ver a bochecha do Joelmir e o nó da gravata do Boechat. Bela imagem, viva o progresso da ciência !

Depois de instalada, o técnico sugeriu que, se ela quisesse, ele poderia levar a enorme caixa de papelão que embalava a TV. Mas ela preferiu ficar - põe lá no fundo, por favor, ao lado do tanque, vou dá-la de presente ao zelador...

E os dias foram passando, que nitidez, que côres, como José Mayer é bonito !

Chegou o sábado, Mina amanheceu tristonha, chorosa, com o olho esquerdo cheio de ramela. Fechadinho. Dona Florinha apavorou, telefonou para Dr. Antonio pedindo socorro. E lá foram os dois levar a cachorrinha no veterinário do Bairro Peixoto, um japonezinho simpático e competente. Mais competente que simpático, na opinião de Dona Florinha, achava ele careiro. Ela sempre foi muito controlada para assuntos de dinheiro.

Mina tinha uma verruga na pálpebra inferior do olho esquerdo, que havia virado para dentro, irritando o globo ocular. O japonesinho não teve dúvidas, sua paciente devia ser operada, operação simples, vapt-vupt. Ele extirpava a verruga e tudo voltava ao normal.
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Nessa hora difícil, Dona Florinha entrou em parafuso, mas Dr. Antonio foi firme: se é necessário, que seja. Ela olhou para Mina, voltou seu olhar para o chão, lágrimas desciam pelo seu rosto, mas não havia outro jeito, se tiver que ser, que seja. Pressentimento.

Concordou.

O japonesinho começou a assepsia, o capricho faz parte do DNA dos orientais, preparou o campo operatório, ela não teve coragem de ver, foi para a sala de espera, esperar.

Dr. Antonio, firme e forte, ficou assistindo a intervenção cirúrgica.

O medico-veterinário aplicou a anestesia, resolveu que seria melhor que fosse geral, assim Mina nada sofreria, ela que era toda espevitada, tinha ido até a psicólogo. Mas nada resolveu...

Nosso drama começa agora: ele calculou errado o peso da cachorra, dose excessiva de anestésico - choque - Mina estrebuchou. Morreu.

Dona Florinha desesperou, nem quando havia resolvido separar-se de Dr. Antonio, nem quando comprou seu apê, nem quando seu filho desmanchou namoro com aquela moça que ela adorava, sentiu-se tão frágil, tão triste.

Passado o trauma, os dois resolveram dar um fim digno a Mina, fazer um enterro de gente, ela merecia, afinal ela era quase humana.

Dr. Antonio achou caro o jazigo no cemitério canino da Guanabara, viu também o preço da cremação, era o mesmo de gente, um absurdo, então resolveu:

- Vou lá perto da casa da Xuxa, prá lá de Jacarépaguá, arrumo um terreno baldio, peço ao filho do zelador me ajudar, fazemos a cova e te telefonamos. Te digo o lugar, você pega um táxi e leva Mina, tadinha. Pode deixar que compro flores no caminho.

Será um enterro digno.

Dona Florinha, soluçando, abraçou Tonhão, que também começou chorar. Tonhão veio correndo quando soube do infortúnio, como seria sua vida sem Mina ? E o japonesinho não sabia onde colocar a cara, cara-de-bunda, pura barbeiragem, e ela que achava ele mais competente que simpático, agora nenhum desses adjetivos lhe serviam.

Como é que vamos levar a cachorrinha morta, dentro de um táxi, daqui de Copacabana até prá lá de Vargem Grande ? Mais uma vez, Dr. Antonio, sensato e experiente, resolveu. Pediu ao filho buscar a caixa de papelão da televisão.

Enquanto ele cuidava da cova, Tonhão cuidava do embrulho. Comprou fita isolante, embalou Mina e ficou esperando o telefonema do pai.

Dona Florinha foi ficando mais calma, tomou Olcadil 2 mg, tem sempre na bolsa. Aceitou a situação, não havia outro remédio, mas não teve coragem de ir ao enterro. Tonhão foi só.

Lá pelo meio-dia, Dr. Antonio ligou, cova aberta, flores, deu o endereço ao filho, lugar complicado, rua de terra, cheia de vai-vem. Mas Mina merece. O veterinário ajudou a colocar o embrulho no táxi, Tonhão deixou sua mãe em casa e seguiu. Prá evitar constrangimentos nada disse ao motorista, ele poderia chiar, afinal não é nada comum carregar um defunto dentro de uma caixa de tv.

Andaram, andaram, seguiram as instruções de Dr. Antonio, a bateria do celular foi-se, entraram e sairam de várias ruas sem calçamento, começou tudo dar errado. O motorista, irado, começou a tratar Tonhão com falta de educação. Os ânimos se exaltaram, o carro encalhou num buraco, uma das rodas girando em falso na lama.

Tonhão, estopim curto, para não piorar as coisas, resolveu sair a pé para buscar socorro. Enquanto isso, o motorista continuou tentando: dava ré uns dois metros, engatava segunda, vai, volta, vai, volta. Conseguiu sair.

Tonhão sumiu, foi buscar socorro.

Quando voltou, cadê o táxi ? O motorista foi embora com a caixa, levando, quem sabe? uma bela televisão... Ladrãozinho, queria ver a cara dele ao abrir a caixa.

Um bom tempo depois o filho encontrou o pai, contou o fato, conseguiram até rir do triste episódio. E pactuaram silêncio, Dona Florinha nunca poderia saber o que tinha acontecido. Segredo absoluto. Para todos efeitos, cova com flores por cima...

Dona Florinha quando chegou ao apê, seus olhos ainda vermelhos, tiritou o telefone. Era aquele paulista, lembram-se ?

- Florinha, como vai ?

- Oh! Meu Querido, Mina morreu, estou desolada !

Ele não entendeu quase nada, não sabia quem era Mina, mas gostou de ser chamado de 'meu querido'. (Depois de conviver melhor com os cariocas, ele viu que todos de tratam assim).

- Estou com vontade de pegar a ponte aérea e ir almoçar com você...

- Pode vir, meu querido, foi Deus quem te mandou !

Ele continuou nada entender, masa sentiu-se, realmente, querido. E foi.

Ele chegou no dia que Mina foi.

- Veio substituí-la, ressureição... pensou Dona Florinha.

Esse fato ocorreu faz um tempinho, e os dois estão juntos até hoje. Mas Dona Florinha ainda sente muita falta de Mina.

Ele não conseguiu suprir a lacuna com eficiência. Está fazendo força, um dia, quem sabe, conseguirá.






2 comentários:

Anônimo disse...

Aloísio, tirando o atraso de 24 horas da postagem, devo recomendar sempre textos mais curtos na internet! No livro, no papel, tudo bem, mas no monitor...
Como sempre seus "causos" são ótimos!

lis disse...

Visitando s blogagens da Gincana , vim conferir e gostei muito desse conto. Divertiu-me pra valer, muito bom.Vou ficar por aqui , é ótimo suas "tiradas"
Abraços

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