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quarta-feira, 23 de setembro de 2009

O MARIDO DA PROFESSORA


Quando eu estudava em Sao Paulo, fiquei numa segunda-época em matemática e arrumei uma professora particular para estragar minhas férias. Hoje não existe mais "segunda-época", chamam de "recuperação", e é bem mais mole, dão sempre um jeitinho de passar o aluno de ano. Falta de vaga. Naquele tempo dava "pau" quem fosse reprovado.

Minha professora morava na rua Henrique Schaumann, bem lá em cima. Hoje essa rua é uma avenida, larga, com duas pistas, canteiro florido no centro - antes era estreita e feia, de paralelepípedos.

No quintal da casa, um corrego meio poluido (esse termo nem existia), com uma vascilante pinguela, e do outro lado, uma horta com alfaces, couve, cenoura e um espantalho preso na cerca. Ao redor, taboas, guanxumas e pernilongos.

O marido da professora, um italiano quase dobrando o cabo, usando seu surrado terno Clube-Um da Ducal, entre o azul-marinho e o preto, de muito usado tinha cor indefinida, camisa branca volta-ao-mundo sempre com o colarinho virado para cima. (Cheguei a pensar em ofertar-lhe um par de barbatanas, eu as tinha aos montes, ou mesmo sugerir-lhe dois palitos Marquesinhos, orgulho da industria lusitana, com as pontas cortadas - mas minha timidez impedia tais liberdades). A gravata era cor de vinho tinto, unica, com no' cebola nunca desfeito, o que dava um ar de desleixo ao funcionario publico, ministerio da Saude, fiscal de alimento nas feiras. Sua testa refletia a luz, seja do sol, seja da lampada. Contemplando o conjunto, uma perola amarelada enfeitando a gravata. A barriga, maior que o paleto, impedia-o de abotoa-lo, e tambem encobria o cinto, preto, a combinar com o Vulcabras do bico largo. Meias de nailon, brancas, destoando. Caia bem, fazia parte do geral.

Sua patroa, ou melhor, minha mestra, alem de excelente didatica - fui aprovado com louvor - era uma balzaca gostosinha, cabelo negro de tintura asa-de-grauna preso em coque, tailleurzinho justo acentuando suas cadeiras, caneta Bic daquela que ainda soltava tinta e manchava o dedo, sutian um numero menor. Oculos redondos, de tartaruga, lhe caiam bem, miope grau sete.

Enfeitando a casa, a filha do casal, loirinha, rabo-de-cavalo, na minha faixa de idade, enfeitou meus dias...

No primeiro dia de aula, cheguei meio desenxabido, a loirinha chegou com um suco de groselha. Detesto groselha desde o tempo dos horriveis sorvetes do Bar Chic, mas como se diz em frances, noblesse oblige, tomei, elogiando. Depois de alguns minutos, a aula correndo, ax2 + bx + c, teoremas com hipotese e tese, comecei a suar frio.

Era a groselha. A coisa foi piorando, pedi permissao, fui ao banheiro e mandei a groselha de volta. Alivio ! Ao sair, olhos esbugalhados, gosto de corrimao de escada de prefeitura na boca, veio minha loirinha, toalha umida e um copo d'agua ! Uma deusa de bondade, iniciamos uma amizade nada romantica, depois de uma vomitada.

Enfim...

Durante quarenta dias tive aulas e, alem dos teoremas e da raiz quadrada, fiquei gostando da familia. E pela loirinha nasceu um sutil carinho.

Contudo, afinidade mesmo eu tive com o velho. Depois da aula, ele convidava-me a sentar na sala e ouvir tangos e boleros na sua surrada Thorens, junto com uma cervejinha. Sua vitrola era daquelas que precisava de vez em sempre trocar a agulha, ficava fanha, gastava. Ele tinha um monte de long-plays, de Carlos Gardel a Libertad Lamarque, passando por Sylvio Caldas e Lucho Gatica. Foi com ele que tomei gosto por esse tipo de musica. Que sigo.

Vamos ao fato.

Numa dessas tardes, ia eu para mais uma aula. Chegando perto da casa, algo estranho no ar. Muita gente conversando no portao.

- O que houve, perguntei.

- O velho morreu.

Desconversaram. Fiquei atordoado, o que teria havido com meu amigo...

Entrei.
Que quadro triste ! Minha professora e minha loirinha, ao lado do morto, cheio de flores, ele bem que merecia, as flores. O velho, dentro daquele tradicional e unico, Clube-Um da Ducal, gravata vinho tinto, perola amarelada. E quase todos a chorar.

Meu amigo morreu.

Quando elas me viram foi um rebu, chorei ouvindo a mestra falar da honradez e da nobreza do falecido, de seu grande amor por aquele homem, fiel, honesto.
Mas de que adianta, agora ele nem existe mais... esta morto.

Minh'alma ficou dilacerada.

Na hora do enterro, mesma coisa. Que bom homem era o finado, vai ser dificil nascer outro igual, ela dizia, enquanto os outros entreolhavam-se. Cinicamente.
Que mundo cruel, pensei.

Deus perdeu a forma quando o fez, falou-me, baixinho, minha loirinha.

Concordei...

Na saida, exausto e comovido, fiquei uns minutos na porta do cemiterio. Comprei um saquinho de pipocas, estava com fome. Um senhor chegou junto ao pipoqueiro, puxou conversa...

- Morreu quieto, estrebuchou, soltou o corpo em cima dela... morreu em silencio ! Deu trabalho tira-lo de la. Chegou a reportagem, sorte que ninguem sabia quem era ele.

Meu amigo tinha morrido trepando, ou melhor, fudendo num rendez-vous da Rua Aurora.

Morte silenciosa, feliz, envolvendo uma meretriz.
Rima rica.

A professora nunca soube, respeito. A loirinha, sim, contaram no colegio.
Mas guardou segredo, respeito.













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